quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


Amor
            Eu iniciei há umas semanas, juntamente com a excelentíssima esposa, um blogue familiar chamado Pais de Quatro, e um dos primeiros posts que escrevi foi a propósito de um filme chamado ‘Amor’, sobre um casal de velhos em que um deles está a morrer. Em rigor, o post não era sobre o filme, mas sobre a resposta do realizador Michael Haneke a um jornalista que, numa entrevista, fez a seguinte observação: "Você sugere que o amor é mais sobre as nossas ações do que sobre os nossos sentimentos, que o verdadeiro amor é, na verdade, intensamente prático?"

            Haneke respondeu como se tal coisa fosse a mais evidente do mundo: "Sim, claro. Aquilo que fazemos por outra pessoa é mais importante do que aquilo que sentimos por ela." Eu achei que aquela era uma resposta muito sábia e muito bela, e escrevi que ela deveria ser proferida em todos os casamentos, e estar pendurada nas paredes de todos os lares. E acrescentava que, ao contrário de "todas as teses do romantismo sentimentaloide e assolapado", me parecia ser "a perfeita definição de amor".

            Um amigo meu leu o post e disse-me que aquilo que eu tinha escrito era horrível, na medida em que parecia que o que eu queria para a minha vida não era uma mulher, mas uma enfermeira. De certa forma, ele assumiu-se como o defensor do tal romantismo assolapado e da intensidade apaixonada de todas as relações, na esteira do mais batido verso de Vinicius de Moraes: "Que [o amor] não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure." Um bonito verso, mas tão certo do seu relativismo amoroso quanto alguns conservadores estão certos do absolutismo do matrimónio.

            Claro está que cada um fala a partir da sua biografia: Vinicius colecionou paixões e casamentos e eu sou um monogâmico praticante. Mas incomoda-me a forma como este olhar sobre as relações insiste em se tornar monopolista, como se se tivesse tornado do domínio da evidência que tudo acaba e que amar uma pessoa durante toda a vida é uma genuína impossibilidade. Estes são os que não percebem Haneke: que amar é sair de mim em direção ao outro, e que se eu nunca sobrepuser as suas necessidades aos meus sentimentos essa pessoa será sempre menos importante para mim do que eu próprio. Porque o romantismo assolapado e sentimentaloide é, demasiadas vezes, apenas um egoísmo disfarçado, que nada tem a ver com o verdadeiro amor.


João Miguel Tavares, jornalista (jmtavares@cmjornal.pt)
Ilustração de José Carlos Fernandes


Ainda o Amor
            Posso voltar a falar de amor? Na semana passada dei-me conta de que escrevo textos atrás de textos sobre a família e a loucura que é criar quatro filhos, e me esqueço quase sempre de falar daquilo que está na base de tudo isso, e sem a qual nada disto seria possível: o amor de duas pessoas. Quem conhece esta página sabe que ela é uma coleção impressionante de desabafos e frustrações, de queixas atrás de queixas. Mas queixarmo-nos é soltar o vapor que nos consome sem sairmos do mesmo sítio. Quer dizer: protestamos, gritamos, choramos – mas permanecemos. E essa permanência só é possível se acharmos que é aqui, no meio da loucura, dos gritos e até do sofrimento, que somos mais felizes. A vida, a rotina mais cansativa, o quotidiano mais furioso, até nos pode empurrar de escarpas e penhascos, mas nós não nos afastamos, porque sabemos onde queremos cair de costas. À certeza desse lugar eu chamo Amor.

            Só que o amor anda espantosamente acossado nos dias que correm. É algo que tem vindo a cair a pique na bolsa de valores, perdendo terreno para a paixão, esse poderosíssimo combustível que alimentou a mais bela literatura, e onde arderam Anna Karénina, Emma Bovary ou Carlos da Maia. A distinção entre amor e paixão é velha como o mundo, e já os gregos associavam o primeiro à permanência (como no caso idealizado do amor platónico) e o segundo à intensidade. Só que as coisas complicam-se quando toda a gente passa a aspirar a uma intensidade permanente. E menos do que isso é pouco. Pior: menos do que isso é falso, como se o amor, para ser genuíno, tivesse de ser uma perpétua paixão.

            Ora, esta ideia de que a paixão é o pico e o amor fica uns metros abaixo conduz a uma outra: a de que aquilo a que se chama uma relação feliz exige um acomodamento por parte do casal, que se tenta convencer de que aquilo continua a ser bom, embora já não consiga chegar ao cume. Esta é uma ideia completamente dominante à minha volta, como se o destino inevitável de todas as relações fosse a dissolução ou o conformismo. Não é verdade. O amor até pode ser o sítio em que os filmes acabam, mas a vida continua. E há gente que se continua a amar, e a ser feliz, até ao fim dos seus dias. Deixar de acreditar na sinceridade deste amor não é apenas triste. É perder a oportunidade para fazer a única pergunta que realmente importa: como é que se consegue chegar lá?


João Miguel Tavares, jornalista (jmtavares@cmjornal.pt)
Ilustração de José Carlos Fernandes


Rumo ao Porto Seguro



(Leia mais em Leituras para a Vida, 14.02.2013, Links 1R)