sexta-feira, 16 de dezembro de 2011



       Ele entrou na minha vida há 20 anos, encostado à entrada da porta da sala 202, na escola onde eu ensinava. Usava ténis três números acima do seu e fartas calças de xadrez, rotas nos joelhos.
       Foi desta forma que Daniel, como o chamarei aqui, embora não fosse esse o seu nome, entrou na escola daquela bela e antiga cidadezinha situada nas margens de um lago, conhecida pelos seus habitantes endinheirados, as casas coloniais brancas e as caixas de correio de metal amarelo.
       Ele contou-me que a última escola que frequentara fora num condado vizinho.
       - Estivemos lá na apanha da fruta - informou-me num tom casual.
       Desconfiei de que este menino amistoso, pouco limpo e sorridente, oriundo de uma família de trabalhadores migrantes, não suspeitava sequer de que fora atirado para o meio de um grupo de crianças de 10 anos que nunca tinham visto calças rotas. Mas se ele reparou na troça, não o demonstrou.
       As 25 crianças olharam-no com desconfiança até ao jogo de kickball dessa tarde, onde na primeira parte ele conseguiu fazer uma home run. A proeza valeu-lhe um pouco de respeito por parte dos críticos dissimulados da sala 202.
       A seguir, foi a vez de Charles, o menos atlético e mais pesado da turma. Após a segunda tacada, no meio dos olhares de escárnio e dos grunhidos, ele viu o Daniel aproximar-se por trás e dizer-lhe baixinho:
       - Não ligues. Vais ser capaz!
Descontraindo-se, Charles sorriu, endireitou-se e deu novamente uma tacada sem qualquer direcção.
       Mas nesse precioso momento, ao desafiar a ordem social daquela selva em que acabara de entrar, Daniel começara a mudar as coisas e a nós próprios.

       No final do Outono, todos nos havíamos aproximado do Daniel. Ele ensinava-nos todas as lições: como chamar um peru selvagem, como ver se a fruta está madura, como tratar os outros, incluindo o Charles! Nunca usava os nossos nomes. A mim chamava-me Miss, e aos colegas, 'pá'.

       Na véspera do último dia antes das férias do Natal, os alunos traziam sempre presentes para os professores. Era como um ritual: a abertura da cada embrulho desta ou daquela loja; examinar o perfume, o xaile ou a carteira de couro, todos de elevada qualidade, e agradecer a cada uma das crianças.
       Nessa tarde, Daniel foi até à minha secretária e disse-me ao ouvido:
       - As nossas caixas chegaram ontem à noite - disse sem emoção - vamo-nos embora amanhã.
       Ao ouvir essa notícia, os meus olhos encheram-se de lágrimas. Para cortar o estranho silêncio que se fez, ele contou-me como iria ser a mudança. Depois, ao ver-me recomposta, tirou uma pedra cinzenta do bolso. Pô-la na mesa e empurrou-a com delicadeza na minha direcção.
       Percebi que era algo de especial, mas, habituada aos perfumes e às sedas, ficara irremediavelmente impossibilitada de corresponder.
       - É sua - disse, fixando os olhos nos meus - poli-a para si, Miss.

       Nunca esqueci aquele momento.
       Os anos foram passando. Todos os Natais, a minha filha pede-me que lhe conte esta história. Começa sempre após ela ter pegado na pedrinha polida que está sobre a minha secretária e vir aninhar-se no meu colo.
       As primeiras palavras da história nunca variam:
        - A última vez que vi o Daniel, ele deu-me esta pedra de presente e contou-me sobre as caixas. Isto foi há muito tempo, mesmo antes de teres nascido. Agora já é um adulto - concluo.
       Juntas, imaginamos onde ele poderá estar e o que será agora.
       - Aposto que é uma boa pessoa - diz a minha filha.
       Depois acrescenta:
       - Conta o fim da história.
       E sei aquilo que ela quer ouvir: a lição de amor e carinho aprendida pela professora com um aluno que nada tinha e, ao mesmo tempo, tinha tudo para dar! Um menino que vivia de terra em terra.
       E toco na pedra, recordando-me dele:
       - Olá miúdo, digo meigamente. Aqui é a Miss. Espero que já não precises das caixas. E Feliz Natal onde quer que estejas!

Selecções do Reader's Digest, Dezembro 1996