domingo, 16 de outubro de 2011

DE COLHER EM COLHER
                 ATÉ À PANÇA FINAL


       Os meus dias de Páscoa continuam a ser passados em família, à volta de uma daquelas mesas tão cheias, mas tão cheias, que é preciso um doutoramento em geometria descritiva para conseguir arranjar espaço em cima da toalha para colocar uma simples garrafa de vinho.

       No momento em que o caro leitor estiver a ler estas linhas, há fortes probabilidades de eu me encontrar com um naco de cabrito preso nas mandíbulas, um resto de sopa de beldroegas a escorregar pelo esófago e uma generosa fatia de tigelada a aguardar-me na cozinha. E sabem o melhor disto tudo? Eu devia estar de dieta.

       Só que ninguém consegue fazer dieta em casa dos pais. Muito menos na Páscoa. Eu bem exibo a pança à minha mãe, explico-lhe que estou com dez quilos a mais em relação ao que devia, argumento com o colesterol e os perigos da obesidade, posso até mostrar-lhe os resultados de todas as análises que fiz ao longo dos últimos cinco anos. Não adianta. Os pais costumam compreender a coisa em teoria ("pois é, filho, realmente tens de ter cuidado com a tua saúde"), mas quando chega a hora de colocar a teoria em prática, o bife que nos vem parar ao prato continua a ser do tamanho de um bezerro açoriano.

       Não há volta a dar-lhe: isto está inscrito nos genes dos progenitores e, de um modo geral, de todos os portugueses com mais de 50 anos. Encher o prato é sinónimo de dizer "eu gosto de ti" – e deixar dez centímetros quadrados de porcelana por atapetar com puré de batata parece ser, para quem nasceu antes de 1960, sinónimo de "eu não te gramo".

       Há uma pessoa na minha família de quem gosto muito que me diz "vai comer, João" cada vez que se cruza comigo no corredor. Se nos cruzarmos dez vezes, diz-me dez vezes, seja manhã, tarde ou noite; di-lo ainda que tenhamos acabado de almoçar há cinco minutos. Aquilo nem chega a ser um conselho, ou sequer um convite. Aquele "vai comer, João" entra na categoria de saudação. É uma forma de dizer "olá", mesmo que através do meu estômago.

       Um antropólogo certamente conseguiria explicar este fenómeno recorrendo às eras em que a comida escasseava e receber bem uma pessoa era colocar em cima da mesa o melhor que havia em casa. Mas ora bolas, a classe média já deixou de passar fome há algumas gerações. As famílias portuguesas precisam urgentemente de encontrar formas alternativas para demonstrar o seu amor.


Por: João Miguel Tavares, jornalista (jmtavares@cmjornal.pt)
Ilustração de José Carlos Fernandes




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