sexta-feira, 2 de março de 2018


"'A Morte estava a dar a volta...', explicava ela para o pediatra, para quem fora empurrada a cigana de mil saias, pele escura, e corpo batido pelo vento e moldado pela noite"

AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ

"A Morte estava a dar a volta..." - a frase foi dita em surdina, um sussurro apenas, brisa de olhos em baixo, para explicar ao burocrata, sentado atrás da janela das "admissões", o incumprimento da ordem que a definia como utente fora da "zona". Como se aquela cigana tivesse noção de "rede urbanística", ou algum sentido dos limites, ou esquadria da cidade. "A Morte estava a dar a volta...", explicava ela para o pediatra, para quem fora empurrada a cigana de mil saias, pele escura, e corpo batido pelo vento e moldado pela noite. Uma vida, ainda jovem, que cheirava a fogueira, e tinha textura de palha e suor, e leis inscritas na pele e na carne, muito antes de ter nascido.

"A Morte estava a dar a volta..." Anos a fio guardei dentro de mim as palavras e a imagem. Recuei até aos primórdios da minha experiência como médico. O Hospital Pediátrico era um conjunto de casarões com o frio das igrejas ao fim da tarde. O pavilhão de doenças infecto-contagiosas tinha a altura de catedrais góticas, e os quartos o anacronismo de portas que oscilavam como os bares de cowboys, onde, presa com um adesivo, e escrita à mão, uma folha esvoaçava na corrente de ar da enfermaria. A letra de cor encarnada, lia-se: "sarampos", mais à frente: "meningites". Quem ocupava os sarampos e as meningites eram crianças que choravam o desespero do sequestro. Nos corredores misturavam como bandos de anarquistas os respectivos vírus e bactérias, com fraldas pesadas de urina e fezes, que talvez uma enfermeira, mais tarde, viesse a retirar. Caras pequeninas, húmidas de lágrimas e ranho, exprimiam o terror e a incompreensão de um campo de concentração, que adultos doutos tinham erguido para seu bem. Não pode haver visitas, era a regra da casa. Por vezes, semanas passavam, sem que os pais vissem os seus filhos, entregues aos cuidados do casarão e de quem lá habitava, senhores absolutos do castelo e suas torres.

Todos os dias, às 12h00, havia informações. Um magote de gente que se acotovelava, mães de olhar ansioso, pais humilhados na sua impotência, ouviam do jovem interno o boletim clínico: O "33" - agitação na turba - um casal destacava-se, mãos que se retorciam, e a resposta que dava alguma esperança, migalhas de vida até ao dia seguinte. O "33", está melhorzinho... vamos a ver. E de pronto as notícias do "34": malzinho - mãos a oscilarem ao ritmo do "assim-assim" - como quem diz: sabemos lá o que Deus lhe destina. Já o "57"... "Vai-se fazer o possível..." Cabeças que caem, como quem reza, ou desespera. Da mãe nascem lágrimas em fio, chuva de monção que preenche o leito das rugas. Apenas húmidos, os olhos do pai.
Gente simples que desce a escadaria que leva à rua, impotente na sua ignorância de antibióticos, injecções e doenças, condenados à pena que decreta a necessidade de confiar em quem não se conhece, nem a alma, nem o saber. As janelas que dos quartos se abriam para fora estavam malevolamente pintadas de tinta rasca, para impedir que os pais espreitassem para dentro dos quartos, na ânsia e na saudade de olharem as crianças. Alguns, com as unhas raspavam brechas que lhes permitissem espreitar, ainda que por alguns segundos, os seus filhos reféns, não só da doença, como do hospital-prisão. Na altura das "punções à espinha", era difícil suportar o choro das crianças. Para meu próprio sossego, implementei um concurso de estoicismo, onde meninas de 4 anos (como a Rosa) tinham o prémio do aplauso, a medalha de mérito da aprovação, se sofressem sem chorar, embora se aceitasse que as lágrimas corressem, se as bocas se mantivessem fechadas.

Astuta e corajosa, a cigana raspou um canto da janela. Saltou um pouco de tinta, o que lhe permitia, todos os dias, vigiar a sua filha. Viu desaparecer uma a uma, de forma metódica, no sentido do ponteiro dos relógios, os bebés da mesma sala. De certo se interrogou porquê, mas depois tornou-se evidente o motivo porque se apagavam, de forma sistemática e regular, tantas vidas pequeninas. No seu espírito, sem endereço, habitado pelas coisas sólidas que a sua vida de nómada lhe tinha ensinado, a razão surgiu límpida, irrefutável, como a descoberta de qualquer evidência, até ali camuflada: "A morte estava a dar a volta." Quando disso se apercebeu, contra o mundo ergueu toda a sua vontade de mãe. Afrontou batas e burocratas. Irrompeu por entre médicos amedrontados por histórias de facas, sangue e vingança. Nos braços tomou a sua filha e levou-a para bem longe, para outro hospital, no canto oposto da cidade. Aí explicou a sua presença, sem culpar pessoas ou regras, na convicção de mulher simples, e com a coragem com que resgatou a sua filha da "força que veste de negro, que por ser feia, esconde a carantonha de esqueleto em capuz negro", que "a morte estava a dar a volta!"


Artigo de Dr Nuno Lobo Antunes, Neuropediatra, in Revista Lux. Folha única, abandonada num assento do Centro de Saúde mas que me alegro de a ter encontrado e guardado... Pergunto-me: Não faria eu o mesmo no lugar desta Mãe?... Desconfio bem que sim!!! Um dia contarei uma história minha deste género...